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sexta-feira, 6 de janeiro de 2012


As Primeiras Curas no Sábado (parte 3)


Por Samuelle Bacchiocchi

O Paralítico e o Cego 

Esta relação entre o sábado e a obra de salvação está bem evidente nos dois milagres aos sábados relatados no Evangelho de João (João 5:1-18; 9:1-41). Devido à sua substancial semelhança, vamos considerá-los juntos. A semelhança é notada em vários aspectos. Os dois homens curados haviam sido doentes crônicos: um, inválido por 38 anos (5:5) e o outro, cego de nascença (9:2). Nos dois exemplos Cristo disse aos homens para agirem. Ao inválido Ele disse: “Levanta, toma a tua cama e anda” (5:8); e ao cego: “Vai, lava-te no tanque de Siloé” (9:7). 
Em ambos os casos os fariseus acusaram a Cristo formalmente de quebrar o sábado e consideraram isto como uma evidência de que Ele não era o Messias: “Esse homem não é de Deus, porque não guarda o sábado” (9:16; cf. 5:18). Nas duas situações, a acusação contra Cristo não envolve primariamente a ação da cura em si mas a violação das leis rabínicas do sábado, quando ordenou que o paralítico levasse a sua cama (5:8, 10, 12) e quando preparou o barro (9:6, 14). Nos dois exemplos Cristo repudiou a acusação de violar o sábado, argumentando que Suas obras de salvação não eram impedidas e sim previstas pelo mandamento do sábado (5:17; 7:23; 9:4).

Antes de examinar a justificativa de Cristo por Suas atividades salvadoras no sábado, deve-se dar atenção ao verbo “respondeu- άπεκρίνατο usado por João ao apresentar a defesa de Cristo.

Mario Veloso, em sua incisiva análise desta passagem, nota que esta forma verbal ocorre apenas duas vezes em João. A primeira vez, quando Cristo replicou a acusação dos judeus (5:17) e a segunda, quando esclareceu a resposta dada (5:19). A forma comum usada por João cerca de 50 vezes é apekrivqh que também é traduzida como “respondeu”. O uso especial da voz central do verbo άπεκρίνατο implica, por um lado, como explica Veloso, numa defesa pública e formal, e por outro lado, conforme disse J. H. Moulton, que “o agente está extremamente relacionado com a ação”.

Isto significa que Cristo não apenas fez uma defesa formal, mas que também identificou-Se com o conteúdo de Sua resposta. As poucas palavras da defesa de Cristo merecem, portanto, cuidadosa atenção. 
O que Cristo pretendeu quando Se defendeu formalmente contra a acusação de violar o sábado, dizendo“Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (João 5:17)? Esta declaração tem sido alvo de considerável e minucioso exame e de algumas conclusões extremadas. J. Daniélou afirma que “as palavras de Cristo condenam formalmente a aplicação do repouso de Deus no sábado como significando inatividade... A obra de Cristo deve ser considerada como a realidade que vem para substituir a figurada inatividade do sábado”. W. Rordorf argumenta que João 5:17 “pretende interpretar Gênesis 2:2 no sentido de que Deus nunca descansou desde o início da criação, e que Ele ainda não descansa, mas que descansará afinal”. À luz da passagem paralela de João 9:4, ele conjetura que “o prometido repouso sabático de Deus... encontra seu cumprimento no repouso de Jesus na sepultura”. Assim, conclui que “Jesus deriva para Si mesmo a ab-rogação do mandamento de descansar no sábado semanal, da interpretação escatológica de Gên. 2:2” Paul K. Jewett repropõe a explanação de Oscar Cullmann, interpretando a expressão “Meu Pai trabalha até agora” como implicando um movimento na história redentora “da promessa ao cumprimento”, isto é, da promessa do repouso sabático do Velho Testamento ao cumprimento encontrado no dia da Ressurreição. O argumento baseia-se em considerar que “o repouso de Deus não foi conseguido ao fim da primeira criação” e sim, como coloca Cullmann, “é primeiramente cumprido na ressurreição de Cristo”. O domingo, então, como o dia da ressurreição, representa o cumprimento do divino repouso prometido pelo sábado do Velho Testamento.

Para avaliar a validade destas interpretações necessitamos primeiro averiguar o significado da expressão “Meu Pai trabalha até agora - έως άρτι e subseqüentemente estabelecer sua relação com a questão sábado-domingo. Há um amplo consenso de opinião em considerar o “trabalha até agora” do Pai como uma referência ao trabalho da Criação mencionado em Gênesis 2:2. O raciocínio por detrás desta interpretação é que, já que Deus está “trabalhando até agora” em atividades criativas, Ele ainda não experimentou o repouso sabático da Criação, mas virá um tempo na restauração escatológica de todas as coisas, quando isto se tornará uma realidade. O domingo, portanto, sendo em virtude da Ressurreição, como diz Jewett, “a realidade e antecipação deste sábado final”, já é celebrado pelos cristãos em lugar do sábado.

A espécie de interpretação usada para chegar a esta conclusão é emprestada do filósofo judeu helenístico Filo, que defendeu a idéia da criação contínua para evitar um aspecto muito antropomórfico do repouso de Deus. “Deus nunca cessou de agir”, escreve Filo, “mas assim como a propriedade do fogo é aquecer, a de Deus é criar”. Aparentemente, porém, Filo faz distinção entre a criação de coisas mortais que foi completada com o divino repouso e a criação de coisas divinas que ainda continua. Posteriormente (cerca de 100-130 AD) os rabinos Gamaliel II, Josué ben Chananiah, Eliezer ben Azariah e Aqiba declararam explicitamente em Roma que Deus continua Sua atividade criativa.

Esta noção de uma contínua criação divina presente no judaísmo helenístico é, todavia, estranha aos ensinos do Evangelho de João. Em harmonia com o ponto de vista de todos os livros da Bíblia, João ensina que as obras da criação de Deus foram realizadas em um tempo passado conhecido como “princípio” (1:1) Neste princípio, através do Verbo que estava com Deus (1:1) “todas as coisas foram feitas... e sem Ele nada do que foi feito se fez” (1:3). Ambas as frases “No princípio- άρκή” e a forma aorista do verbo “έγένετο - fazer (ou trazer) à existência” indicam com suficiente clareza que as obras da Criação são consideradas como concluídas em um indefinido passado distante. Além disso, o fato de que em João 5:17 as obras do Pai são identificadas com aquelas desempenhadas por Cristo na terra, indica que não é possível que sejam as obras da criação, porque Cristo naquele momento não estava ocupado em obras de criação. Fazer distinção entre as obras do Pai e as do Filho seria destruir a absoluta unidade entre os dois, que é enfaticamente declarada no Evangelho de João.

A que se refere então este “trabalha até agora” do Pai? Há indicações conclusivas de que a expressão refere-se não à atividade criativa, mas redentiva de Deus. O Velho Testamento apresenta um antecedente explicativo. Ali, como G. Bertram mostra, “a atividade de Deus é vista essencialmente no curso da história de Israel e das nações”. M. Veloso bem destaca que “não é questão de uma história considerada como uma mera sucessão de atos humanos, mas uma história moldada pelas obras salvadoras de Deus, pelo que se torna a história da salvação”. No Evangelho de João estas obras de Deus são repetidamente identificadas como o ministério redentor de Cristo. Jesus diz, por exemplo, “as obras que o Pai me confiou para que eu as realizasse, essas que eu faço testemunham a meu respeito, de que o Pai me enviou” (5:36). O propósito da manifestação das obras do Pai através do ministério de Cristo é também explicitamente declarado: “A obra de Deus é esta, que creiais nAquele que por Ele foi enviado” (6:29). E também: “Se não faço as obras de meu Pai, não me acrediteis, mas se faço e não me credes, crede nas obras; para que possais saber e compreender que o Pai está em mim, e eu estou no Pai” (10:37-38; cf. 14:11; 15:24).

Esta amostra de referências esclarece a natureza redentiva e o propósito do trabalho que Deus está fazendo até agora, mencionado em João 5:17. Uma breve comparação com a passagem paralela de João 9:4 deve remover quaisquer dúvidas. Jesus diz“É necessário que façamos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar” (9:4).

A surpreendente semelhança entre os dois textos deve ser notada não apenas em seu conteúdo, mas também em seu contexto. Nos dois exemplos Cristo defende Suas “obras” aos sábados de serem violação do sábado, como acusam Seus inimigos. Entretanto, em João 9:3-4 a natureza redentiva das obras de Deus está absolutamente clara. Não apenas o Pai é descrito como Aquele “que envia” o Filho para fazer Suas obras, implicando assim o caráter missionário da atividade de Cristo, mas a própria cura do cego é descrita como a manifestação das “obras de Deus” (9:3).

Estas evidências forçam a conclusão de que o “trabalhar até agora” do Pai, de João 5:17, não se refere a uma ininterrupta atividade criativa de Deus que possa anular qualquer observância sabática, mas sim às obras de salvação realizadas pelo Pai através do Filho. “Melhor dizendo”, para usar as bem escolhidas palavras de Donatien Mollat, “existe uma obra de Deus: que é a missão do Filho no mundo”.Se nossa identificação do “trabalha até agora” do Pai (5:17) como a missão salvadora de Cristo está correta, conclusão esta que nos parece inevitável, então aquelas interpretações mencionadas anteriormente que explicam as obras de Cristo como uma referência ao repouso sabático da Criação, que supostamente Deus não guardou ainda, são portanto incorretas, já que a noção de criação não está absolutamente presente em João 5:17.

No entanto, uma dúvida ainda permanece, ou seja, o fato de Cristo defender Suas curas aos sábados no campo das ininterruptas atividades salvadoras de Seu Pai, manifestadas através dEle, não implica em que, como declarou Jewett, “por Sua obra redentiva, Jesus coloca o sábado de lado”? Defender que através de Seus feitos no sábado Cristo estava anunciando (embora de uma maneira velada) o fim da observância do sábado, é sustentar a mesma posição dos judeus que acusaram a Cristo de quebrar o sábado (João 5:16, 18; 9:16). E esta era a acusação que Cristo firmemente recusava admitir.

Nos episódios de cura que consideramos anteriormente vimos que Cristo defendeu Suas atividades salvadoras aos sábados com base nas considerações humanitárias previstas, pelo menos em parte, até mesmo na legislação rabínica. Vimos também em João que Cristo refutou formalmente a acusação de quebrar o sábado com um argumento teológico admitido por Seus oponentes. Antes de considerar o argumento de Cristo, deve-se enfatizar que neste e em todos os outros exemplos Ele não admite ter transgredido o sábado, antes defende a legalidade de Sua ação.

Como bem declarou M. Veloso, “uma defesa nunca é destinada a admitir a acusação, mas, ao contrário, a refutá-la. Jesus não aceita a acusação de transgredir o sábado lançada sobre Ele pelos judeus. Ele está realizando a obra de salvação que é lícito praticar no sábado”.

Para compreender a força da defesa de Cristo em João, precisamos lembrar o que já discutimos em parte, ou seja, que o sábado tanto está associado ao cosmos através da Criação (Gên. 2:2-3; Êxo. 20:8-11) como à Redenção através do êxodo (Deut. 5:15).

Enquanto pela interrupção de todas as atividades seculares os israelitas estavam lembrando o Deus-Criador, pelos atos de misericórdia aos semelhantes estavam imitando o Deus-Redentor. Isto era verdade não apenas na vida das pessoas que, conforme observamos, deviam aos sábados ser compassivas para com as classes inferiores da sociedade, mas particularmente nos serviços do Templo. Ali, no sábado, os sacerdotes realizavam muitos trabalhos comuns que os israelitas eram proibidos de fazer. Por exemplo, enquanto nada devia ser cozido nos lares aos sábados (Êxo. 16:23), no templo o pão era cozido nesse dia (I Sam. 21:3-6) para substituir o pão da presença que era renovado cada semana (Lev. 24:8; 1 Crôn. 9:32). O mesmo é verdade quanto a todos os serviços relacionados com a manutenção do sistema sacrifical do templo. Muitas atividades que por si eram comuns, tornavam-se santas no sábado, já que contribuíam para a salvação das pessoas. Estas atividades salvadoras podiam ser realizadas no sábado, pois o próprio Deus, como diz o salmista“desde a antiguidade... opera feitos salvadores no meio da terra” (Sal. 74:12).

Com base nesta teologia do sábado admitida pelos judeus, Cristo defende a legalidade de Seus atos salvadores aos sábados dizendo: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (João 5:17). Isto equivale a dizer: “Aos sábados Eu estou empenhado na mesma atividade salvadora que o Pai, e isto é perfeitamente legal”. Para evitar mal entendidos Cristo explica a natureza das obras do Pai que o Filho também faz (5:19). Elas consistem em ressuscitar e vivificar mortos (15:21) e realizar um julgamento que salva (5:22-23). Para os judeus que estavam sem vontade de aceitar a reivindicação messiânica de Cristo, esta justificação de realizar no sábado as obras de salvação do Pai, tornaram-nO culpado por dois motivos: “não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era Seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (5:18).

Esta hostil reação levou Cristo a esclarecer posteriormente a legalidade de Sua ação. Em João 7:21-23 (a passagem que a maioria dos comentaristas reconhece como relacionada ao capítulo 5), encontramos o eco da controvérsia. Aqui Cristo elabora Sua anterior justificação teológica para seus atos aos sábados, usando sabiamente o exemplo da circuncisão: “No sábado circuncidais um homem. E se o homem pode ser circuncidado em dia de sábado, para que a lei de Moisés não seja violada, por que vos indignais contra mim, pelo fato de eu ter curado, num sábado, ao todo, um homem? Não julgueis segundo a aparência, e, sim, pela justiça” (7:22-24).

Por que era legítimo circuncidar uma criança no sábado quando o oitavo dia (Lev. 12:3) após seu nascimento caía nesse dia? Nenhuma explicação é dada, já que isto era bem compreendido. A circuncisão era considerada como um ato redentivo que mediava a salvação do convênio. Era legal, portanto, mutilar num sábado, uma das 248 partes do corpo humano (que os judeus reconheciam) para salvar toda a pessoa. Com base nessa premissa Cristo argumenta que não há razão para preocupar-se com Ele por restaurar neste dia “ao todo, um homem” (7:23).

Este exemplo esclarece e substancia a prévia declaração de Cristo a respeito do “trabalhar até agora” referente a Seu Pai, já que sugere que as obras de salvação são realizadas no sábado não apenas por Seu Pai no céu mas também por Seus servos, tais como os sacerdotes, na Terra. O sábado é, então, para Cristo, o dia de trabalhar para a redenção de todo o homem. Nas duas curas, realmente, Cristo encontrou mais tarde, no mesmo dia, os homens curados, e ministrou quanto a suas necessidades espirituais (João 5:14; 9:35-38). Seus oponentes não podem perceber a natureza redentiva do ministério de Cristo aos sábados porque eles “julgam segundo a aparência” (7:24). Consideram o fato do paralítico carregar a cama no sábado mais importante do que a restauração física e a reunificação social que isto simbolizou (5:10-11). Acham que misturar o lodo no sábado é mais significativo do que a restauração da vista ao cego (9:14, 15, 26).

As provocadoras infrações dos regulamentos rabínicos por parte de Cristo (tais como carregar uma cama ou misturar lodo no sábado) destinavam-se não a invalidar o mandamento do sábado, mas a restaurar o dia à sua função positiva. M. J. Lagrange muito apropriadamente, nota que “Cristo foi cuidadoso em distinguir o que era contrário e o que estava em harmonia com o espírito da lei... Jesus estava trabalhando como o Pai e se as ações do Pai de nenhum modo contradiziam o repouso prescrito pelas Escrituras, então as atividades realizadas no sábado pelo Filho não eram contrárias ao espírito dessa instituição”.
Podemos concluir que as obras do Pai a que Cristo Se refere quando diz “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (João 5:17) não são as obras da Criação que João considera como completadas, mas as obras da Redenção. Deus descansou ao completar a Criação, mas por causa do pecado, Ele ainda está trabalhando para realizar sua restauração. Estas obras de salvação, às quais o Pai está constantemente dedicado, são previstas e permitidas pelo mandamento do sábado.

Cristo, portanto, nega ter agido contra o sábado quando restaurou pessoas enfermas, pois estava realizando exatamente a mesma missão salvadora do Pai. Além disso, em João 9:4, Jesus aparentemente estendeu a Seus seguidores o mesmo convite para fazer a obra de Deus “enquanto é dia; a noite vem quando ninguém pode trabalhar” (9:4).

Alguns interpretam esta “noite” como uma referência à morte de Cristo que inaugurou o verdadeiro repouso de Deus em virtude da Ressurreição comemorada pela observância do domingo. Embora seja verdade que para Cristo a “noite” da cruz estava muito próxima, é difícil que o termo se aplique exclusivamente à morte de Cristo, já que tal “noite” é descrita como um tempo “quando ninguém pode trabalhar” (9:4). A morte de Cristo dificilmente pode ser considerada como a interrupção de toda a atividade redentora divina e/ou humana. Não poderia este termo referir-se ao fim da história da Redenção quando o convite de Deus para aceitar a salvação não será mais atendido? Por outro lado, as expressões “Meu Pai trabalha até agora” (5:17) e “é necessário que façamos as obras . . . enquanto é dia” (9:4), ditas por Cristo para defender o Seu ministério de salvação no dia de sábado, bem resumem a compreensão do Salvador a respeito do sábado, isto é, que se trata de um tempo de experimentar a contínua salvação de Deus partilhando-a com outros.

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